Capítulo 3 - O Vigilante



Guardou os binóculos e encostou-se à janela. Nunca iria entender o que presenciava regularmente.
A vizinha do prédio em frente vivia um inferno na terra e duvidava que alguém o soubesse. Provavelmente, alguns vizinhos tivessem uma noção do que se passava, mas nunca viu ninguém ir bater à porta ou a pedir satisfações.
Não sabia o nome dela. Lembrava-se perfeitamente do dia em que a tinha visto pela primeira vez, sentada à janela a ler um livro. Linda. Deslumbrante. Lia avidamente e entregava-se por completo à história. Sabia disso, porque tão cedo a via chorar, como a via a rir às gargalhadas. Tinha um brilho nos olhos enquanto lia.  Um brilho que se extinguia quando o “animal” chegava a casa.
A primeira vez que presenciou a porrada, mal quis acreditar no que os seus olhos viam. Sentada à janela, sem fazer mal a uma mosca, viu-a fechar abruptamente o livro e levantar-se num pulo. De repente, do nada, levou uma valente chapada e caiu estatelada no chão. O “animal” continuou a agredi-la até deixar de espumar pela boca. Quando terminou, andou lentamente até ao bar e serviu uma bebida. Ela, manteve-se imóvel no chão durante o que lhe pareceu uma eternidade.
Ficou especado sem saber o que fazer, se chamava a policia, se ia até lá. O que fazer? Decidiu pela polícia e quando ia pegar no telemóvel, viu-a levantar-se. Seguiu os seus movimentos e passados alguns minutos viu-a passar num vestido vermelho, completamente arrebatadora e com um sorriso nos lábios. Direccionou os binóculos para a cozinha e observou, impávido e incrédulo, a mulher a jantar animadamente com o homem que quase a matara.
Só podia estar louco. Não podia ser verdade. Assistiu ao jantar, sem acreditar no que via, e observou-os a ir, de mãos dadas para o quarto.
Nessa noite, não conseguiu dormir. Ficou acordado a pensar na linda mulher do quarto andar. Na mulher que qualquer homem sonharia ter. Na mulher que aquele “animal”, provavelmente, estava a aterrorizar.
Obviamente, ficou obcecado. No dia seguinte, assim que chegou do trabalho, correu a observar a vizinha. Viu-a chorar desalmadamente e quase que a quis ir consolar. Não estava a ler, o choro só podia ser resultado da sua condição. Viu-a a arrumar a casa. Viu-a a ler. Reparou que não tinha telemóvel, não a viu um único segundo com um na mão. Reparou que a mulher não saiu de casa. Para o seu próprio alívio, reparou que o animal, nesse dia, não tinha voltado para casa. 
Estabeleceu uma rotina: trabalho e observar a vizinha. Três dias depois o “animal” regressou e a saga repetiu-se.
Daniel, começou a manter um registo das porradas, das ausências do “animal” e do dia a dia da sua Rapunzel. O que o intrigava era o sorriso, o jantar animado, o sexo... Será que ela queria ser salva? Será que fazia parte de algum fetiche? Não podia intervir sem ter a certeza que tudo o que se passava era contra a sua vontade. Seria?
Decidiu concentrar-se naquela besta.  Onde é que ele ia quando desaparecia durante dias? Que poder tinha sobre ela? Porque é que ele é que trazia as compras para casa? Porque é que nunca saiu com ela para a rua?
A sua vida nunca teve um propósito. Sempre foi um dos invisíveis da sociedade. Em criança foi martirizado na escola devido ao excesso de peso. Em adolescente foi gozado devido ao acne. Agora, adulto, sem excesso de peso e sem acne, simplesmente ninguém o via. Ninguém sabia da sua existência. Foi este motivo que o levou a observar os outros. Queria saber quantos mais seriam como ele. Quantos invisíveis solitários e miseráveis andariam por aí?

Daniel, o Invisível, finalmente ganhou um propósito na vida. Salvar a donzela maltratada. Resgatar a Rapunzel, apenas se ela precisasse de ser resgatada. Se esse fosse o caso, aquele “animal” não ficaria impune. Nos filmes, seus únicos companheiros de toda a vida, os maus da fita tinham sempre o que mereciam. E, na maioria das vezes, a justiça era feita com as próprias mãos...


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