Capítulo 22 - Carta de Angola

Maria, sentou-se à janela com o livro poisado no colo. Não conseguia ler. Olhava fixamente para os outros prédios em busca do Daniel. Engraçado como ele nunca lhe dissera exatamente qual a janela dele. Sentia saudades... Sentia saudades dos abraços e dos beijos calorosos. Sentia saudades das horas de conversa animadas. Sentia saudades da pessoa que era junto dele. Há muito que se tinha esquecido de sorrir, de verdadeiramente sorrir.
O toque da campainha assustou-a. Nunca ninguém tinha tocado à campainha. O que poderia ser? Quem seria? Como iria fazer? Tinha de ir procurar a chave que o ferreiro lhe dera. Com medo que Pedro viesse, de repente, e a encontrasse escondeu-a no fundo de uma gaveta. Já não se lembrava de qual.
Espreitou pelo pequeno visor na porta e reparou que era o correio. Abriu a porta, meio desajeitada, e assinou a carta que ele havia trazido. Quando viu o nome da mãe como remetente, assustou-se. Segurou em ambas as mãos na esperança que deixassem de tremer. Fez um chá e voltou para a sua cadeira voltada para a janela. Respirou fundo e abriu a carta.
“Minha filha, lamento a intrusão mas não tinha outro meio para te contactar e não conseguia aguardar até ao final do mês para te contar a infeliz notícia. Infelizmente, o teu pai faleceu a semana passada. Temos andado tão preocupados com o teu irmão que nos esquecemos por completo que não somos imortais. O teu pai faleceu durante a noite. Eu, que estava ao lado dele, nem me apercebi. Gosto de pensar que foi uma morte sem dor. O funeral, infelizmente, já aconteceu, minha filha. Não tinha como te contactar e sabes como são as coisas aqui em Angola. Gostava de estar aí neste momento para te consolar, minha filha. Sei como adoravas o teu pai. O teu irmão, acho que nem se apercebeu da ausência do pai. Há dias em que está mais consciente e dias em que se perde na sua mente. Apesar das provações que Deus nos põe no mundo, eu dou graças por te ter a ti minha filha. Não quero que venhas daí a correr. O teu pai já foi enterrado. O teu pai já não está entre nós. Não há nada que possas fazer. Obrigada pelo sacrifício que tens feito para cuidar de nós. Amo-te muito, minha filha. Saudades, da tua mãe.”
Maria, apertou a carta entre as mãos e levou-a até ao coração. Chorou a morte do seu pai. Chorou pela sua incapacidade de fazer mais e melhor. Chorou pela sua falta de coragem de sair daquela prisão. Chorou com saudades do Daniel. Queria encostar-se no ombro dele e chorar a dor que carregava na alma. Tinha sido tão bruta com ele, mas precisava de proteger a ambos. Não fazia ideia do que Pedro faria caso descobrisse o que se passava. No fundo, desconfiava que ele sabia de algo. A violência com que a atacou na última vez não teve precedentes. Sentiu uma raiva agravada como nunca tinha sentido antes.
Pensou em fazer sinais de luzes, da janela, para o Daniel. Pode ser que ele reparasse e fosse ter com ela. Queria tanto, estar com ele. Ele não o podia salvar mas podia aliviar-lhe a dor. Precisava de aliviar a dor!
Fechou os olhos e viu o pai. Estava sentada ao colo dele enquanto ele lhe trançava o cabelo. O seu pai sempre fora diferente dos outros. Apesar de trabalhar o dia todo, tirava sempre tempo para cuidar dela. Dividia as tarefas de casa com a mãe, dava-lhe banho, contava-lhe histórias, trançava-lhe o cabelo. Os tios chamavam-no cobarde e frouxo. O pai sorria e dizia que homem que é homem cuida da sua família. Ao ajudar a mulher estava a cuidar dela. Para os homens africanos isso era um sacrilégio. As mulheres trabalhavam em casa e os homens sustentavam a casa. As mulheres estavam ali para os servir. O pai dela era diferente. Era um cavalheiro, tratava a mãe com amor, carinho e muito respeito. Quando o irmão nasceu o pai alegrou-se ainda mais, sempre sonhou com uma família numerosa. Contudo, a doença do irmão quebrou-o. Maria sentiu que um pedaço do pai morrera por se sentir incapaz de ajudar o filho...

Nesse dia, Maria jurou que ia fazer de tudo para ajudar o irmão, para aliviar a dor do seu pai. A vida pregava partidas... Há cinco anos que tinha deixado o seu lar, o seu país para ajudar a família. Só queria fazer o pai feliz... Agora, encontrava-se longe do lar, sem poder despedir-se do pai, com a alma manchada, o corpo marcado e o coração despedaçado, a ajudar um irmão que nem se devia lembrar da sua existência... De que serviu o amor do pai? De que serviu ser criada com tanto amor? No fim, o mundo ocidental é que tinha razão, era o dinheiro, não o amor, que comandava o mundo!


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